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29.3.10

Educação em Prisões: o olhar de uma egressa

Um terço da minha vida “Harvard”. Ingressei no mundo “de lá” aos 20 anos e sai nas vésperas dos 30. Posso até parafrasear Raul: “Eu nasci após 10 mil anos...”. de fato, os quase 3.500 dias incluíram: 11 rebeliões, três copas do mundo, a inserção de mais um dígito nos telefones, bilhete único, motor flex, Enem, a massificação da internet, a destruição das Torres Gêmeas, facções... (Gente!!! Sou do tempo dos costureiros de guarda-chuva em feiras de domingo!) E enquanto o mundo se transformava, muitas vezes me senti como um móvel com placa de patrimônio, naquela instituição onde pagava penitências (assim já explica seu nome).
Nos primeiros sete anos atuei na Escola/Posto Cultural. Ali respirava e suava EDUCAÇÃO. Sorvia informações, numa busca descabida por atualização. Tecla F5 full time! Era a única maneira de minimizar a sensação de estar à margem da sociedade.
Assisti às mulheres de classes D e E sendo acolhidas pelo ensino precário que o Estado garante. Vencemos os muitos recursos que o sistema cria para evidenciar o valor do trabalho, como remição de pena e/ou forma de resgatar a família. Reivindicamos esta remição também para as aulas. Por fim, algumas das que sobreviveram, assisti escreverem cartas, trocarem promessas, concluírem o ensino fundamental, médio e até escolherem carreira para universidade... Vi algumas lerem suas sentenças com mais clareza, montarem pedidos de benefícios. Acompanhei, in loco, mutações nas concepções acerca do certo, do ético e do justo. Vi sensações tornarem-se produto de comunicação. Isso me fez que aquele era o “bote salva-vidas” do mundo e a “pílula do encolhimento” do índice de reincidências. Ledo engano. Ensino laico não forma índole, caráter, nem escrúpulos! Afinal, ali estava eu!
Sua ausência pode significar gesso, mobilidade reduzida de comunicação e, por sua vez, diminuição nas oportunidades de subsistência e consumo; pode desencadear a segregação e até a fertilização do campo da marginalidade. Também pode significar um individuo limitado em sua ignorância, mas politicamente correto. Logo, tirar o tal gesso não é o bastante. Necessário é aplicar FISIOTERAPIA! Mexer com seus dois gumes: o tangível e o intangível. Este segundo, muito mais afiado, é o instrumento que vai desentorpecer; tocar aquelas mulheres tão plurais em suas experiências e tão complexas em suas dores; fazê-las atravessar a madrugada, amanhecendo ensolaradas. O gerenciamento das informações é a opinião formada, e esta abre precedentes para o intangível que tanto agrega. Isso me tornou uma mulher melhor! Um ser mais polivalente; não só ADESTRADO, mas CONSCIENTE de suas capacidades e de seu poder destruidor; portanto, mais maduro e capaz.
Aqui ou lá, no fundo, buscamos o mesmo: sair do terreno da invisibilidade. Desejamos INCLUSÃO. Segundo Aristóteles, a felicidade resulta do exercício das virtudes em sintonia com a vida em sociedade. A alfabetização propicia o coletivo, a inserção, a sociedade. Bens tangíveis! A CONSCIENTIZAÇÃO propicia o bem maior: a liberdade das virtudes! E quando essa fisioterapia é iniciada lá dentro, a mulher chega no mundo “de cá” pronta para a maratona da globalização – ora benéfica, ora um porre! –, onde lema é “fazer a diferença” com selos de certificação até no currículo; onde uma pessoa não precisa ser PhD para ter consciência e economizar água e energia elétrica. Precisa estar CONSCIENTE.
O que falta nas prisões femininas então? O mesmo que falta fora delas: FORMADORES DE OPINIÃO versus ESPÍRITOS PRÉ-DISPOSTOS.
E o que sobra no mundo “de lá”? O mesmo que aqui, o mesmo que na Faixa de Gaza, o mesmo que o coelho de Alice: PRESSA, COMPETIÇÃO onde cabem PARCERIAS. E assim o homem vai degustando paradoxos. A tecnologia de ponta e o alimento orgânico; a demanda semanal que não cabe na agenda nem no trânsito; os desejos que não cabem no bolso, as frustrações que não cabem em seu foco de atenção. Então corre para o campo, para o customizado, para a ioga. Corre. Vai desenfreado atrás do relax. Acelerado. Confundindo o comum com o normal.
Quando, raramente, escrevo para alguém que ainda está em “Harvard”, saliento que a sensação de estar conectado não é tudo aquilo de mágico como conversávamos com a bola de vôlei nas mãos.
Ó, não!! Não tem preço estar, agora, “aqui”, onde cheguei, tangível e inatingivelmente, neste ponto de CONSCIÊNCIA e maturidade. Após muita fisio, muito silêncio e um constante reinventar-se, de EDUCAÇÃO e OPINIÃO!


PS: texto retirado do livro EDUCAÇÃO EM PRISÕES, iniciativa da AlfaSol e CEREJA.